sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Quando não queremos ver...

"Tu sabes que não é verdade que nada mude. O mundo não recua de todas as vezes que avança, a caminho de uma ordem caótica imutável. Há uma diferença numa morte a menos. Baixa a televisão - ao teu lado há uma criança de dois anos que grita por socorro, ainda antes de saber pedir socorrro. E eu não posso fazer nada - eu não sou nada. Mas tu podes, filho da mãe. Levanta-te desse cadeirão, desliga a televisão, por favor, e vai lá. Faz isso por mim.
(...) O choro da menina já quase não se ouve, e tu não sabes de nada. Ninguém sabe de nada e a menina está a morrer. Mas morre devagar. Repete que quer ir para a avó(...)
Levanta-te cabrão. Baixa o som dessa cuspideira de imagens que te impedem de ver e ouvir. Salva a menina que quer ir para a avó onde moram a Branca de Neve e os Sete Anões. Salva-a do monstro que lhe deu vida e que amanhã de manhã vai ao hospital tentar convencer os médicos de que a menina caiu, durante a noite.

(...)


A diferença entre a vida e a morte pode ser uma televisão acesa, com o som demasiado alto, para tapar outra morte. Se eu não tivesse morrido, tu não subirias tanto o som da televisão. E terias ouvido os gritos da criança, que não teria morrido."

Inês Pedrosa, em «Fazes-me Falta»